“Eu moro com a minha irmã mais nova, de 16 anos, e com a minha mãe aqui na Nova Holanda (uma das 16 favelas que compõe o Complexo da Maré). Minha mãe se mudou tem pouco tempo pra cá, porque estava morando em Santa Cruz. Minha relação com a minha irmã é um pouquinho difícil, mas a gente tenta apaziguar no dia a dia. A gente tenta. Eu sinto muita responsabilidade por ela. Acho difícil ser a irmã mais velha, principalmente nos momentos que minha mãe não está por perto. “
Quando eu era mais nova, até quatro anos de idade, morávamos na Rubem Vaz (outra favela do Complexo da Maré), eu, minha irmã e os meus pais. Nessa época, meu pai batia muito na minha mãe. Ele bebia muito, chegava em casa e agredia muito na minha mãe. Fui crescendo vendo isso. Quando eu tinha 9 anos, eu vi na televisão duas mulheres lutando. Pensei: “Cara, eu quero fazer luta”. Aos 9 anos eu já era super madura e fiquei determinada que faria luta. Meu pai me levou na Vila Olímpica. Mas a verdade é que eu queria fazer luta pra defender a minha mãe, para não deixar mais minha mãe apanhar do meu pai. Comecei a fazer karatê em outro projeto e comecei a ficar violenta. Até que eu dei um soco no olho do meu primo, porque ele tinha puxado o meu cabelo. Isso foi fora da aula, mas eu fui expulsa do karatê.
Tinha dois amigos que faziam jiu-jitsu em outro projeto, numa outra ONG, e essa outra ONG passava o ensinamento de “bateu, tem que revidar mesmo“. Eu só fui ficando mais violenta. Fiquei nessa outra ONG dos 11 até meus 15 anos de idade. Nesse meio tempo, cheguei a brigar com o meu pai. Ele me bateu e eu revidei. A ONG fechou e eu precisava, na minha cabeça, a continuar treinando pra me defender e defender a minha mãe e minha irmã. Foi aí que eu conheci a Luta Pela Paz e vim treinar boxe.
Nessa época eu tinha 15 pra 16 anos e ainda estava com aquela mentalidade antiga de responder violência com violência. Mas quando eu comecei aqui, além dos esportes de luta, tinha também aula de cidadania (desenvolvimento pessoal). E foi essa aula que acabou me ajudando muito porque falava coisas reais sobre o cotidiano e sobre tudo o que acontecia na Maré e no mundo. Foi aqui na Luta pela Paz que eu tive o primeiro contato com uma psicóloga, que me ajudou muito. Ela conversou muito comigo. Além das aulas e da psicóloga, o Suporte Social foi o ápice pra mim, que me ajudou bastante e acabou me ajudando a mudar minha cabeça.
Um dia, subi no último andar da Luta pela Paz, que eu ainda não conhecia e vi uma mulher dando aula. Nunca tinha visto, porque todos os meus professores eram homens até aí. Aí eu saí do boxe e entrei no judô. Essa professora ficou só um ano e eu comecei a ter aula com o Bira. O Bira conversava muito comigo, coisa de pai pra filha mesmo e isso foi muito legal pra mim porque era algo que eu nunca tive em casa. Eu nunca tive esse afeto paterno. O que o meu pai me mostrava era violência. Diferente do meu pai, o Bira me mostrou muito afeto e foi isso que me deu força pra continuar no judô. Assim, eu pude ir crescendo e amadurecendo mais e entendi que eu tinha que deixar o tempo ir levando e resolvendo algumas coisas. Acabou que depois de um tempo, meu pai e minha mãe separaram. Nesse dia, eu fiquei muito feliz, porque minha mãe sofria na mão dele.
Foi treinando com o Bira que, depois de um tempo, ele viu que eu tinha jeito com criança, em ajudar ele na aula, e me chamou pra ser monitora dele. Em 2019, fui contratada como estagiária na Luta pela Paz e dou aula de judô em seis escolinhas, quatro aqui na Maré, uma de Ramos e uma no Andaraí. É difícil conciliar tudo, mas tendo horário vago na faculdade, eu vou. Além de ser estagiar aqui no judô da LPP, dar aula em escolinhas e treinar, eu faço faculdade de Educação Física lá no Celso Lisboa, no Engenho Novo. Consegui uma bolsa de 50% e pago a outra metade. Consigo ajudar a minha mãe também que está desempregada. Eu me sento muito responsável por tudo, né? Além disso, minha irmã não estava estudando e corremos atrás de matrícula na escola pra ela retomar os estudos. Agora que conseguimos, estou muito feliz dela estar no nono ano.”
SONHOS E FUTURO
“Eu sei que quando eu falo de sonho, de futuro, acabo sempre falando de muita coisa material. Mas eu sei que eu só vou conseguir isso tudo fazendo o que eu gosto e acredito. Sonho em ter minha casa própria, meu carro… Ter meu diploma, que é a coisa que eu mais venero na minha vida. Também quero conquistar a minha faixa preta.
Quando eu entrei aqui minha meta era completamente outra. A Luta pela Paz foi importante na minha vida. Profissionalmente, quando eu era pequena, meu sonho era ser atriz. Hoje quero dar aula, lidar com crianças. Estou fazendo um curso de extensão na PUC de Psicomotricidade em Práticas Educativas pois consegui uma bolsa. Estou aprendendo sobre psicomotricidade, do que pode o que não pode fazer. Por exemplo, a criança não pode ter uma rotina. Isso acaba gerando um desgaste no crescimento dela. Nessa idade é muito importante a evolução e a rotina que ela própria está desenvolvendo. E isso é algo que eu lembro sempre durante o meu estágio aqui da Luta pela Paz e nas outras escolinhas. Quando as crianças estão separadas em grupos fazendo alguma coisa, cada grupo está criando alguma coisa, vivendo alguma história. Elas sempre tão criando algo construtivo naturalmente, que as vezes a gente de fora vê como bagunça, mas é o pensamento delas.
Morando na Maré temos alguns desafios. Quando sai tiro aqui de manhã e tem alguma coisa na faculdade e eu não posso sair, isso me entristece muito. Eu já perdi um trabalho porque estava saindo tiro e eu não pude sair de casa. Claro que muita gente não entende, né? Mas os professores são tranquilos. Tem muita gente com muito preconceito com as favelas, que não sabe o trabalho incrível que é realizado por aqui. Eu acho que o grande ponto alto da Maré, por exemplo, são as organizações que atuam aqui dentro. Tudo isso pra apoiar o crescimento dos jovens e adultos. Aqui na Luta Pela Paz, além das aulas de boxe e artes marciais, tem o reforço escolar, ensino de jovens e adultos, o desenvolvimento pessoal, as feiras de empregabilidade, assistência social, psicólogo… E é isso, a Luta Pela Paz pra mim é o ponto mais positivo que a gente tem aqui na Maré hoje. Ela me apoiou muito na questão familiar que era muito difícil, na questão profissional e na educativa. São estes três pontos importantíssimos e que sem o pessoal daqui eu não teria tido apoio nenhum.”